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Monthly Archives: Julho 2013


“A avó Leocádia andava com problemas de vista.

– Cada vez vejo pior – lamentava-se ela ao falar com os netos.

– Não se preocupe –  tranquilizavam-na eles – que isso é natural na sua idade e se precisar de alguma coisa cá estamos nós para lhe darmos uma ajuda.

Ela gostava que os netos lhe dissessem  palavras agradáveis como aquelas porque a faziam sentir-se bem, mais confortável e amparada, menos sozinha com os seus medos e problemas.

Nos últimos tempos andava intrigada com imagens que lhe passavam pelos olhos.

– É que – garantia ela – as borboletas azuis do bule de chá saíram da porcelana branca e começaram a a esvoaçar pela sala.

Ninguém quis acreditar naquilo que a avó Leocádia contava.

– São confusões que lhe andavam na cabeça e que são naturais na sua idade. – justificava-se a filha Mafalda com um sorriso complacente e com um encolher dos ombros que parecia querer dizer; ” não a levem muito a sério, que eu já sei o que a casa gasta… “.

Mas a avó Leocádia, com os olhos piscos e a voz fininha, insistia:

– Ainda ontem as borboletas levantaram voo e encaminharam-se para a janela da sala. se não estivesse fechada tinham ido lá para fora.

Perante a insistência da avó, os netos chegaram a convencer-se de que estava mesmo doente e que era preciso reforçar os cuidados que tinham com ela.

– A avó  – segredaram-lhe –   tem de descansar mais, de ler menos jornais e de ver menos televisão.

Sem perceber muito bem  a razão porque lhe estavam a fazer aquelas recomendações, a avó Leocádia apontou para o bule e disse:

– Se olharem com atenção, hão-de reparar que elas voam mesmo.

Claro que ninguém acreditou. Os netos foram para a rua brincar e a avó lá ficou entregue às suas dúvidas e interrogações, com a certeza de que aquilo que acabara de contar era a mais pura das verdades.

Nesse dia a família reuniu-se, enquanto a avó Leocádia dormia, para discutir o seu problema. Será que estava mesmo doente? Não seria melhor mandar chamar o médico?

Concluíram que sim, que não estava bem e que precisava de urgentes cuidados médicos.

*Preocupada a filha Mafalda foi pé ante pé ao seu quarto ver se dormia tranquila e saiu de lá num grande alvoroço.

– Venham depressa, venham depressa porque ela tem borboletas azuis a esvoaçarem à volta da cabeça.

E é que tinha mesmo. eram para aí umas dez, acabadinhas de sair da porcelana branca do bule, que estava muito quieto na mesa de cabeceira como se não fosse nada com ele.”

Texto de: José Jorge Letria


Ninguém se lembra

que a porta de casa tem duas caras:

a de dentro e a de fora.

Se uma ri a outra chora.

A de dentro está aconchegada,

sente o calor da lareira e das pessoas,

sabe o que há para jantar,

cheira e vê as coisas boas.

A de fora dorme à chuva,

gela de frio e de tristeza.

Recebe os golpes de vento

e o chichi dos cães vadios,

as pancadas do carteiro,

que bate sempre três vezes,

e a perícia dos ladrões,

que não batem nenhuma.

(…)

Agora o segredo: ficam a saber

que  as duas caras da porta não são muito dadas,

o que não admira: não se podem ver.

Estão sempre voltadas de costas voltadas.

As duas são portas a porta de casa

mas a de fora vive na rua

e a de dentro é quem lá mora.

Ninguém se lembra que a porta

tem duas caras.

Se a de dentro ri, chora a de fora.

Texto de : Álvaro Magalhães


” Parecia a voz da mãe

que docemente o chamava.

Afinal, onde é que estava?

E aquela estranha gente?

E percebeu de repente

que tinha estado a sonhar.

Foi tudo imaginação.

Afinal estava na praia;

estava deitado no chão,

onde o seu irmão João

tentava os primeiros passos,

deixando na areia traços,

misturados com pegadas

das gaivotas que pousavam

e logo a seguir voavam.

Marcas que a maré cheia

mais tarde iria levar,

talvez esconder no mar.

Ainda um pouco estremunhado

viu ali, bem ao seu lado,

o balde, a pá, as forminhas,

pedras e muitas concinhas

que antes havia juntado.

Veio-lhe à mente, então,

que antes de adormecer

tinha pensado fazer

uma grande construção.

No balde foi buscar água

e começou a moldar

um castelo à beira-mar

com uma torre e ameias,

tudo feito com as areias,

conchas e muitas pedrinhas

que conseguiu arranjar.

 

 

Texto de : Regina Gouveia